quarta-feira, 2 de junho de 2010

Cântico negro




"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

(José Régio)

Período Noturno




Cai a noite
como cadáver
duma senhora doente

24 horas
começa ir embora

Gira a Terra
com pessoas
vivendo na merda
Apodrecendo
ao relento
Cada um
cada qual em sofrimento

Nas esquinas esquecidos
bebem líquidos podres
analgésicos para dores

Suas vidas são feridas
abertas onde todos
metem os dedos

Caiu a noite como defunto
de senhor doente
O ciclo do dia começa o fim

Histórias destroçadas
vão da vida sendo retiradas
Eis a noite de próxima
trágica madrugada
Saudades em quartos
escuros limpos ou sujos
Lágrimas que brilham
tristezas sem belezas

Pessoas em pânico
se jogam em trânsito
nas suas veias
fortes calmantes

É a saída do sol
entrada da lua
no céu cinza

Bando de crianças de rua
gritam para vítimas
deixarem pertences
para suas vidas inconsequentes
Do outro lado empresas
de lucro absoluto
empurram seus empregados
para fora já é o horário
Vão indo para o subúrbio
nas sub-vidas numa ida
aos rios de sangue
rios de janeiro

Namoros terminam
amigos brigam
Policiais prendem inocentes
flagrantes forjados
pobres atacados
por armas de todos os lados

Famílias nas marquises
desabrigo e desamparo

Viciados começando
seus tragos

Hospitais lotados
plantão esgotado
enchentes por todos os lados

Vítimas vidas
no manto noturno
só no início
até a alta madrugada
muita água suja
pra rolar


A noite na cidade
alarde estabelecido
Perigo genocídio
passeio do desespero
nas cidades do submundo


(MONOTELHA)